Cotação: §§§§§
Livro: O filho eterno
Autor: Cristovão Tezza
Editora: Record
222 páginas
Todos nós conhecemos a sensação de um dia, subitamente, acordarmos e deparamos com uma imagem desagradável no espelho. Com uns é mais frequente, com outros, menos. Pois essa sensação me assaltou quando li a última das 222 páginas de ‘O filho eterno’, e no curso de cada uma delas também.
O livro, vencedor de inúmeros prêmios (Jabuti, São Paulo, Portugal-Telecom, entre outros), foi o meu espelho e, mesmo feia a imagem, passo a defendê-la, ou justifica-la, ainda que aos tropeços, como faz o narrador. Talvez defender o pai egoísta (?) que renega, ou tenta renegar, até o último argumento uma verdade inafastável, seja defender a mim mesmo. Talvez o seu egoísmo e o seu cinismo diante da realidade simples, mas cruel, seja o meu. Não sei, mas o impulso é inevitável.
De tudo, o que restou da minha imagem feia diante do espelho foi a verdade; algum dia acordamos e notamos que o cabelo está despenteado e babamos a noite toda, estamos (somos) feios. O livro de Tezza me tirou do sono (sonho) profundo e me pôs diante do espelho, e serei eternamente grato a ele por isso.
Da história basta saber que um homem (no início do livro ele ainda não é um pai) espera pelo primeiro filho. Ele imagina o filho perfeito como imagina a si próprio e conclui que um filho é aquilo que esperamos do filho, portanto, seu caminho está traçado. Mas não é. Seu filho tem Síndrome de Down e, a partir dessa notícia, a vida que levava deitado sobre uma cama de ilusões muda de perspectiva. O colchão fura e o ar do idílio dá lugar aos tijolos da realidade.
Tudo gira em torno de como o pai vê o filho e sua importância e a importância da Síndrome em suas vidas que vão seguindo impossíveis de ser freadas, ou alteradas. Suas frustrações começam a aflorar amontoando-se uma sobre uma e, amadurecendo o pai, começamos a perceber que não se trata de egoísmo, e sim de insegurança, frustração, o medo do tal espelho. Não se trata de crueldade, e sim do desespero de descobrir que as coisas jamais poderiam ser o que não foram (como teoriza o próprio pai ao longo de todo o livro) e isso incomoda. Trata-se de acordar e notar que seu rosto (pelo menos às vezes) é mais feio do que você supunha e isso machuca.
Em certos momentos tive a impressão esquizofrênica de que o autor invadiu minha cabeça e descobriu alguns dos meus segredos inconfessáveis, angústias e inseguranças que parecem uma marca de nascença contra a qual não há cirurgia de remoção. Acho que isso não aconteceu, mas é tão impressionante a sinceridade com que a narrativa se desenvolve que sua qualidade está nisso, e a difere da maioria dos livros, é uma história verdadeira, sob muitos aspectos, e por isso é tão profunda, tão relevante.
Lembro alguns livros que foram importantes na minha vida (alguns segredos inconfessáveis): O pequeno príncipe, O menino maluquinho, As aventuras de Tom Sawyer, O piano e a orquestra, Antes do Baile Verde, O estrangeiro, 1984, Libertinagem & Estrela da Manhã, O Cortiço. Todos em momentos e por motivos diferentes, não mudaram, mas ajudaram a construir o que eu sou e ‘vim sendo’. ‘O filho eterno’ entra nessa galeria pessoal, e a partir dele enxergo outro rosto no espelho.
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